terça-feira, julho 19, 2005

A indisciplina e a agressividade são defesas legítimas e necessárias para o aluno em um sistema opressor

Há muito alarde em torno dos limites e da disciplina na escola, muito alarde mesmo. Joana (nome fictício), diretora de uma escola de bairro, afirma que "o mais importante da educação são os limites" e conclui que "devem ser os mesmos em casa e na escola”.

Tal pensamento não pode ser considerado um desvario isolado, pois são muitas as pedagogas - a minoria de homens que me perdoe a hegemonia feminina na profissão - que consideram as "crianças de hoje pequenos monstros indomáveis criados por famílias desestruturadas" e a escola como tendo o papel de substituir essa família, "uma instituição falida".

É importante perceber o teor messiânico, e como tal autoritário, desse pensamento, pois ao afirmar que os limites ou regras devem ser os mesmos em casa e na escola aquela diretora defende, talvez até sem perceber, que as famílias, em suas casas, devem seguir as leis da escola, uma vez que seria inviável para a escola adotar simultaneamente as leis de todas as casas.

Do mesmo princípio autoritário decorre a relação causal estabelecida por Joana entre a educação e os limites, como se a essência da educação fosse “a capacitação para a obediência e a adequação à vigilância superior”.

Uma professora de pós-graduação na área de educação que prefere não ser identificada narra que ao facilitar encontros entre pedagogas, ouve já sem perplexidade que “tanto as práticas pedagógicas tradicionais quanto as construtivistas buscam os mesmos objetivos”, em que de forma quase unânime entre os participantes o construtivismo é definido enquanto espécie de “autoritarismo polido”.

Joana afirma que a escola que dirige é construtivista, talvez por que ser construtivista é bonito, está na moda, então a escola se diz construtivista por que os pais procuram tal palavra mágica, mas, sabendo que os pais também esperam da escola dos filhos algo parecido com o que vivenciaram há 20 ou 30 anos em suas próprias experiências, atende-os em todas as suas expectativas: denominação progressista e prática reacionária.

O confronto entre a vivência particular de uma escola e o relato de pedagogas e pesquisadores faz perceber que, talvez, não haja má fé em oferecer aos pais a mentira que desejam ouvir: a de que são construtivistas enquanto tão tradicionais quanto as freiras das escolas católicas da metade do século passado, pois é possível que boa parte das profissionais da educação acreditem, do fundo do coração, que são mesmo construtivistas.

Talvez seja necessário remover a poeira das obras de Piaget, Vygostsky e Wallon. Certamente seria de grande valia ir à livraria em busca de Paulo Freire ou até de Michael Foucault.

Tais leituras deveriam ser obrigatórias para a formação e a reciclagem de profissionais da educação e não são autores revolucionários, são fundantes do pensamento hegemônico atualmente nas ciências da educação.

Autores como Paulo Freire estão, apesar de tudo, esquecidos na prática da maioria das salas de aula e da maioria das escolas, sejam elas públicas ou privadas, de classe baixa, média ou rica, que se mantém, apesar de toda a reflexão publicada nos últimos 100 anos, extremamente autoritária.

Não há como esperar respeito e alteridade de alunos que aprendem com violência e autoritarismo. A indisciplina e a agressividade são defesas legítimas e necessárias para o aluno em um sistema opressor na maioria das salas de aula.

A escola tem a função de facilitar o processo de socialização do indivíduo e para cumprir com essa função numa sociedade democrática a escola tem que educar para o exercício da democracia.

Não há como ensinar crianças e adolescentes a exercer a democracia em um processo de ensino-aprendizagem autoritário, em uma vivência autoritária.

Disciplina se refere ao atendimento a determinadas normas, mas pode ser extremamente ético e relevante descumprir deliberadamente normas que não possuem legitimação e as escolas estão cheias de regras que não são legitimadas por aqueles que as deveriam seguir e que, coincidentemente, deveriam ser também seus beneficiários.

Não há como pensar em ensinar e aprender sem a coerência entre o fazer e o falar.

Reproduzido em: http://pre-esferapublica.blogspot.com/2010/07/indisciplina-e-agressividade-sao.html

12 comentários:

Anônimo disse...

Bom, um dos mais graves problemas do Brasil é a educação. Há uma divergência muito grande entre família e escola, eu percebo isto na minha própria família. Os pais se sentem perdidos e os flhos são os maiores prejudicados. Ambas as instituições família e escola ficam sem autoridades sobre as crianças. A educação tradicional se tornou incipiente, não é mais ideal para o aprendizado dos alunos hoje. A educação deveria acompanhar a evolução da tecnologiia e principalmente do pensamento humano. Realmente Paulo Freire deveria ser leitura obrigatória para funcionários da educação. Eu trabalho em um sistema educacional que segue a linha construtivista e tem influência em escolas particulares e públicas em todo Brasil, e o nosso maior desafio é mudar a mentalidade desses profissionais, propor uma nova idéia de educação que não foi a que eles experimentaram no seu tempo de escola. Isso é um desafio que vai ser superado aos poucos.

Anjo Mecânico disse...

Simy,

Talvez não tenha sido claro no texto, mas a divergência entre escola e família é necessária e saudável, não há como ser iguais, não devem tentar ser. Escola é público, um dos primeiros aprendizados formais para o público, família é privado. Tem de ser diferente mesmo.

Se ambas as instituições perderam autoridade? Não, não acredito que a família ou a escola gozassem de mais autoridade no passado, mas é verdade que no passado se exercícia a autoridade enfrentando outras formas de resistência.

Podemos, no mínimo, dizer que as crianças daquela escola não aprenderam o respeito ao próximo, já que não foram respeitadas, a alteridade, já que elas próprias jamais foram consideradas enquanto indivíduo, não aprenderam a viver em uma sociedade democrática, já que vivenciaram o totalitarismo em sua formação, aprenderam que a força é o único meio de se obter respeito através da própria pele e é com base nesse aprendizado está estruturada há gerações.

Não, a escola ou a família não perderam uma autoridade que jamais tiveram, apenas não conseguem mais exercer plenamente a violência com toda a crueza que lhes era aceitável, buscando meios mais sutis de o fazer ou acreditando que a renovação é tão somente a manutenção das práticas autoritárias revestidas de gentileza, acreditando que isso é uma nova forma de educação.

Mantoan é que fala algo como "há já hoje quem diga que o construtivismo não deu certo, ora, mais o construtivismo nem foi implantado ainda, como não deu certo?" e eu vou mais longe: as pessoas que falam isso e muitas das que dizem aplicar, nem compreendem bem o que é.

Claro que há muita gente boa buscando mudar verdadeiramente a educação, ora, senão nem teríamos esse referencial teórico ou esse debate. Em toda cidade grande há uma ou outra escola que se mantém forte e persistente, buscando se tornar um pouco mais construtivista a cada passo.

Aceito plenamente que mudar é difícil e que o simples esforço verdadeiro de o fazer representa talvez o maior dos ganhos possíveis, mas não é o fim da jornada, muito mais se morre em mera jogada publicitária.

Anônimo disse...

Léo eu entendi o seu post e estou inclusive discordando que a divergência de idéias entre família e escola seja bom. Veja bem, a função de escola e família são diferentes. mas devem ser compatíveis ou se completarem. O aluno vai para a escola com 5 anos, com um caráter já sendo formado pelos pais e chega na escola se depara com valores totalmente diferentes daqueles ensinados pelos seus pais. Isso gera um choque de informações. O aluno se sente perdido, em dúvida do que seguir, em que acreditar. No entanto quando falo de disciplina e respeito, não quero dizer autoritarismo no sentido de gritos, palmatórias e alunos mudos na sala de aula, estou falando de disciplina como consequência do respeito que deve existir entre aluno e escola. Nenhuma das duas instituições hoje consegue manter um minimo de respeito nem na escola nem em casa. Pelo menos a noção de respeito e concientização tem que ser compatíveis. O contrutivismo realmente não foi implantado, mas a proposta está aí. Eu não concordo que pais busquem tradicionalismo, acho que buscam qualidade de ensino aliado a uma escola disciplinada, e eu disse disciplinada e não autoritária. Quem oferece maior resistência é a própria direção e professores. Pelo menos é o que observamos nas escolas onde tentamos mudar esta mentalidade, esse tradicionalismo.

Anjo Mecânico disse...

Sobre a divergência de idéias entre família e escola eu chego ao ponto de dizer que ela não só é boa, quanto não há outro jeito de ser, é questão simples de aceitar ou não essa diferença.

Como disse no texto, acreditar que pode existir consonância de idéia entre escolas e famílias é acreditar em pensamentos únicos, em pensamentos exclusivos, é querer que todos sejam iguais, todos pensem iguais.

É negar a diversidade, é negar o outro. Eu sei que é assim que a maioria das pessoas quer ver a família, a escola e o mundo, pois foram educadas dessa forma. Buscar a aceitação do outro é um exercício difícil para o qual não se é capacitado muitas vezes nem na família e nem na escola.

O aluno enfrenta um choque quando vai à escola, mas é justamente por isso que vai à escola, para perceber que o mundo não é a sua casa, para perceber que o mundo não é ele, para perceber que existem sim valores diferentes, pois eles existem e é uma das missões da escola tornar isso claro e concreto. A escola, no entanto, muitas vezes se acredita como detentora dos valores corretos, daqueles que deveriam ser universais, fatal...

Como defendo também, a violência física não é, de forma alguma, a única forma de violência e isso tanto escolas quanto família já aprenderam, pois exercem a violência de forma um pouco mais polida, o que não deixa de ser um ganho, embora minimo.

Quanto à hipotese de que os pais procuram escolas disciplinadas e não autoritárias, é difícil aceitar isso, ao menos que isso seja a moda (maior frequencia na curva normal), pois a maioria das pessoas sequer consegue abstrair sobre quão autoritária é sua praxis quotidiana.

Muitas pessoas no Brasil associam autoritarismo à ditadura militar, apenas isso. Sim, qualquer ditadura é autoritária, mas qualquer regra que se tente impor, que não seja legitimada por quem a deve cumprir é autoritarismo velado. Então na maioria das vezes em que se falar em disciplina se está falando em autoritarismo.

É verdade, contudo, que as experiências de inspiração democrática ou libertária na educação costumam estar permeadas de respeito, de moral, de ética, portanto tambpem de limites e disciplina, mas são experiências demais raras no mundo.

O ponto em que eu toco é exatamente que a maioria das pessoas está de tal forma tão imersa em autoritarismo que lhe é naturalizado, que não é capaz de refletir sobre quão autoritárias são suas práticas.

Débora Pissarra disse...

Os limites sempre serão necessários, porém o bom senso de quem o aplica e principalmente o exemplo são a base na colocação deste limite.
Mas limite, por mais duro que seja, deve sempre ser colocado com amor.
Amor no sentido de ser claro as regras e o porquê delas.
Ah, vcs podem dizer mas as crianças não entendem.
Digo: sempre entendem, se o limite é colocado com coerência.
Quer maior prova de amor, você ensinar seu filho que ele deve respeitar o outro, o espaço do outro?
É um dos atos de amor mais puros, porque você estará dizendo a ele que o mundo não gira apenas em torno de suas vontades (porque ele vai sempre se deparar com isso durante o resto de sua vida).
Quem sabe o mundo para ele fique uma lugar mais coerente de se viver?

Anjo Mecânico disse...

É, embora seja possível estabelecer uma leitura reacionária do seu comentário, também é possível traçar uma leitura em convergência com as minhas crenças, especialmente quando afirma: "Os limites sempre serão necessários, porém o bom senso de quem o aplica e principalmente o exemplo são a base na colocação deste limite."

Bom senso é expressão que eu abomino, pois supõe que existe um senso qualquer que seja correto, verdadeiro, bom e universal, o que é uma falácia, mas sem dúvida eu acredito no exemplo como segredo do sucesso.

É aí, no entanto, que mora a grande falha modal, pois como se pode ensinar a respeitar o outro se não se respeita a criança. A criança aprende muito mais com o que é feito com ela do que com o que é falado a ela.

Há a necessidade de coerencia entre o falar e o fazer, mas não é isso que acontece, seja nas práticas escolares, seja na prática doméstica.

Resta em mim o desejo de lapidar ainda mais a questão, o que seria muito elucidativo, peço-lhe o privilégio de estabelecermos um diálogo através de nossos textos, uma vez que a dimensão da questão excede o status de míseros comentários.

O que acha?

Anjo Mecânico disse...

Limites são uma consequencia, um meio, parte de um processo e não um fim em si mesmos e, muito menos, o fim da educação, quanto mais da educação formal, da escola.

Anônimo disse...

Como já dizia aquele ditado: "Quem não apanha em casa, apanha na rua." Hehe! Abraço.

Anônimo disse...

Certamente a idéia expressa e os objetivos do autor no texto acima citado conflitam com a afirmação apócrifa acima!

ekalafabio disse...

Olá.

Agradeço o comentário que fez no meu blog.

Também não sou anarquista, nem nunca conheci um que seja de verdade, mas amo o conceito, que não tem nada a ver com "opressão do coletivo" (isto é comunismo). Anarquia para mim é o exagero da Democracia: poder para o povo. Poder para todos.. ou para ninguém. Liberdade.

Unknown disse...

As perguntas que me faço, e transponho a voces é: A construção do conhecimento não caminha junto com a disciplina? A formação cidadã não implica em respeito e construção de valores morais e éticos para uma sociedade mais justa e igualitária? A grande questão, creio eu, é, em primeiro lugar. separar adequadamente uma questão da outra e depois juntá-las para organização da escola. De fato, o termo disciplina sempre aparece junto com autoridade, mas, não superamos isso a muito tempo quanto dividimos esse mesmo termo de autoritarismo? Todos nós vivemos em torno de regras que existem para o bom convívio social. Tais regras são estabelecidas em padrões de valores morais e éticos que conduzem, ou melhor, conduziriam, a uma relação de paz, respeito e equilíbrio entre os membros dessa sociedade. Assim o estabelecimento dessas regras de convívio no ambiente escolar não significam atuar com autoritarismo. Um colega sindicalista mencionou em certa ocasião: para ter greve são necessários os grevistas. Num modelo construtivista não basta o professor adotar tal metodologia, é necessário, eu diria, fundamental, que o aluno queira aprender e tenha disciplina e organização em seus estudos.
Como construir o conhecimento sem a menor atenção ao que é proposto pelo professor? Que cidadão formaremos se acreditarmos que tudo é normal e faz parte do contexto que vivemos. Na verdade os educadores remam contra a maré, pois, no modelo social e econômico que vivemos o individualismo, a aparência, o levar vantagem em tudo e a qualquer preço são exemplos de nosso cotidiano na política e na nídia.

Anjo Mecânico disse...

A própria disciplina é um conhecimento e uma construção. Há muitas formas de se construir conhecimento e muitas formas de se construir disciplina. O problema é a disciplina como um fim em si mesmo ou a não tolerância da indisciplina dentro do processo de aprendizagem.

Há fundamentação moral, ou ética se preferir a raiz latina, para que se tenha o objetivo de uma sociedade mais justa. Nem todos concordarão que mais justa implica em mais igualitária, mas muitos concordarão com a importância da justiça distributiva ou compensatória.

Autoridade ou autoritarismo, como separar o joio do trigo?

É difícil eu aceitar que tais termos estejam tão bem separados, hoje mesmo alguém defendia o direito dos pais agredirem seus filhos em privado, então como achar que é tão claro? Como separar o bom do mau? Não creio que hoje ou amanhã estarão estaticamente separados, pois se entendermos a cultura como um tecido dinâmico, também perceberemos que os conceitos transformam-se ao longo dos deslocamentos espaciais e temporais.

A questão de 'como as regras são construídas' é muito pertinente quando se pensa que são um instrumento importante de aprendizado para a moral. Se as regras são construídas há uma grande aprendizado moral, mas se as regras existem a priori, há um aprendizado simples, se houver, da própria regra em si.

Sem dúvida o aluno é peça fundamental no processo de aprendizado e, no confronto com o outro é que aprendemos a construir e respeitar limites verdadeiramente.

Não creio que nossa sociedade esteja decadente, muito pelo contrário!