Estarrecedor nessa história da Cartilha “Politicamente Correto & Direitos Humanos” é a naturalização do autoritarismo. A cartilha, lançada há quase um ano, ganhou destaque a partir de um artigo de João Ubaldo Ribeiro no O Globo, onde afirma que “Estamos ingressando numa era totalitária. É o primeiro passo para se instituir uma nova língua e baixar normas sobre as palavras que devemos usar”.
Parece ingênuo afirmar que “estamos ingressando”, quando disfarçada de democracia, a oligarquia brasileira constituiu-se desde a colonização e se mantém no poder até hoje, apesar da renovação de alguns grupos em alguns territórios.
A defesa de Nilmário Miranda, secretário de Direitos Humanos, entretanto, impede-nos de examinar até a exaustão a afirmação de João Ubaldo, pois é ainda mais sintomática do autoritarismo presente no governo que a própria cartilha. Nilmário afirma que “Não há nada de autoritário. É um texto educativo, não vai ser transformado em lei”.
Em primeiro lugar, é obviamente autoritário reclamar para si a prerrogativa de determinar como os demais devem se expressar, que palavras e expressões devem ou não fazer uso, mas é outro o clímax da afirmação.
O secretário elimina a clara relação entre autoritarismo e educação, como se uma das principais formas de manutenção do status quo não fosse justamente a educação.Educação, aliás, é matéria que, a despeito do considerável avanço das últimas décadas, permanece como espaço privilegiado para a reprodução do sistema autoritário.
Além de ignorar que o autoritarismo se manifesta através da educação, Nilmário Miranda ainda deixa transparecer em si mesmo o autoritarismo cristalizado e naturalizado, pois afirma que o texto da cartilha “não vai ser transformado em lei”, como se ele ou o governo contassem com poder tal que pudesse impedir a legislação presente e futura de se basear em tal cartilha para reformar as leis existentes ou mesmo as criar totalmente novas.
A nova cartilha do governo deve mesmo ser recolhida, talvez queimada, mas não só ela. Devem ser banidas de nosso país todas as cartilhas e todas as apostilas. Todas as promessas mentirosas de conhecimento fácil.
Os livros didáticos devem ser conservados em nossa terra, acessível a todos, mas não como instrumento de educação e sim como peça de museu. Deve-se criar o Museu do Livro Didático.
Devem tomar lugares dos livros didáticos os tão somente ou simplesmente chamados livros. Educandos de todas as idades devem ter acesso à pluralidade e à diversidade e não convidados a consumir conhecimento em forma de lata, monótono e monocórdio, com aparência de verdade.
O livro didático em sua tradição e a novidade das apostilas dos “cursinhos” são expressão do autoritarismo que assola a nação brasileira. São não mais que a materialização de uma maldição que cada geração renova para seus filhos.
É urgente que a família brasileira, seja qual for sua composição, assuma a tarefa de casa de ler em conjunto livros de história, de literatura, de geografia, de direito, de política e de vários outros saberes. Que cada cidadão seja convidado a ler em família, uma ou duas horas por dia, o livro do seu gosto. Que o governo gaste seu dinheiro comprando e distribuindo o maior número de livros através das bibliotecas ainda em funcionamento em nosso país.
Talvez com a adesão de muitos à leitura em família encontre-se saída para a tradição autoritária brasileira. Talvez muitos se tornem até consumidores, compradores de livros e de jornais, não apenas por terem desenvolvido o gosto pela leitura, mas principalmente por que certamente terão desenvolvido potencial: necessidade, desejo e poder para consumir mais que o estritamente necessário ao atendimento de suas necessidades fisiológicas ou, nos melhores casos, também de segurança.
Somente no dia em que muitos brasileiros, mesmo que não todos, mas ao menos uma parcela significativa, que seja dos jovens, puderem pensar em sua realização pessoal e profissional o Brasil poderá se ver livre do jugo autoritário de suas oligarquias pré-republicanas. Antes disso, antes da nação contar com cidadãos conscientes e necessitados de sua própria cidadania, toda polêmica relacionada à liberdade, à justiça ou à democracia é mera expressão retórica da farsa democrática high tech, com suas belíssimas urnas eletrônicas, modelo exportação para o mundo do exercício brasileiro de democracia.
Politicamente Correto & Direitos Humanos não passa de mais uma entre tantas maquiagens baratas e mal aplicadas com o objetivo de minimizar a feiúra e a crueza da parca formação intelectual da nação brasileira. Um faz de conta como tantas outras cartilhas, apostilas, livros didáticos, merendas escolares, bolsas escola, bolsas família e tudo mais que possa retardar o empoderamento popular.
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