segunda-feira, novembro 29, 2010

Algumas palavras sobre a moral da criança segundo Jean Piaget*

Baseado no texto original de Ingrid Lira Rocha
Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará
Mestre em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco

As mãos usadas para acariciar
não deveriam ser usadas para machucar


Anomia
O raciocínio moral do bebê


Conforme sua capacidade cognitiva, quaisquer limites são estritamente temporários para um bebê, que ainda não é capaz de obedecer a regras, pois não reconhece causa e efeito.

O bebê é motivado por seus impulsos e desejos imediatos e o mundo para ele não é nada mais que uma continuação de seu próprio corpo.

O estágio de raciocínio moral do bebê é denominado anomia, pois é um estágio em que o indivíduo não percebe a existência da moral e não tem capacidade para fazer julgamentos.

A melhor forma de evitar as ações ou comportamentos indesejados ou inseguros de um bebê é oferecendo-lhe atividades alternativas.

Heteronomia
O raciocínio moral da criança a partir dos dois anos


A partir de dois anos a criança pode perceber o mundo como algo distinto de si mesma, pois passa do estágio sensório-motor para o simbólico (pré-operatório) e se torna capaz de estabelecer relações, mas essa percepção do mundo externo tem somente a si mesma como referencial. Para a criança o mundo externo é regido pelas mesmas leis que regem seu próprio corpo.

A criança do simbólico é capaz de estabelecer relações, mas essa relações ainda são limitadas, pois tendo apenas a si mesma como referencial e dependendo de evidências concretas para lidar o mundo que a cerca, a criança reconhece a existência de um outro sem perceber que esse outro pode não estar pensando o mesmo que ela.

Durante essa fase a criança vivencia o realismo moral, que pode ser entendido a partir de duas tendências predominantes: (1) a tendência a considerar as normas como exteriores a si e segui-las ao pé da letra sem a compreensão de princípios implícitos e (2) a tendência de julgar a gravidade de uma falta a partir de seu resultado ou de seu caráter material e não em função da intenção do indivíduo.

As regras estabelecidas pelos pais são denominadas consignes por conta da maneira como são compreendidas pelas crianças. Essas regras são tão certas quanto as leis naturais da física ou da biologia. São como um dever a ser cumprido como garantia do amor de seus pais.

A relação que a criança do simbólico estabelece com seus pais é uma relação de respeito unilateral, que é sustentado pela necessidade da criança de ter o amor dos pais e pelo temor em perdê-lo. A relação da criança para com os pais é bastante diferente da relação que os pais estabelecem com a criança, que é voltada para o cuidado, para evitar danos e para os desejos e necessidades da criança. O adulto não recebe ordens da criança, pois mesmo que as “receba” não se sente obrigado a atendê-las.

A criança que entra no simbólico passa a perceber a existência das regras, mas a obrigação de atendê-las nada tem a ver com seu conteúdo, restringindo-se a obrigação ao fato de que emanaram de seus pais. Para essa criança os pais são os detentores da verdade universal.

O realismo moral é elemento do estágio heterônomo do raciocínio moral, um estágio em que a escala de valores de um indivíduo é externa a si. A criança do simbólico não tem a capacidade de compreender que há diferentes formas de agir e pensar e não se julga apta a criar suas próprias regras ou a discordar das regras estabelecidas.

A moral heterônoma baseia-se numa relação de coação que pode se dar tanto entre dois indivíduos, como em toda a pressão de um conjunto de tradições sobre uma comunidade.

A coação social conduz inevitavelmente ao conformismo ao sentimento de obrigação e não à compreensão verdadeira da regra, por isso a criança pode demonstrar a veneração consciente de alguma regra e mesmo assim não ser capaz de agir em concordância, pois a capacidade de enunciar uma regra não implica que a criança seja capaz de usá-la como um guia para as suas ações.

Uma criança cujo raciocínio moral é heterônomo pode enunciar que é errado bater, mas usar o tapa ao ser contrariada pelo colega, pois o mecanismo de coação não permite que o indivíduo aproprie-se das regras.

Durante o estágio simbólico a coação social e o realismo moral são decorrentes das limitações cognitivas próprias da criança nessa fase do desenvolvimento, mas a atitude dos pais pode reforçar ou não essas limitações.

Uma criança que não tem espaço para contestar as regras, para emitir suas opiniões ou que não participa ativamente do processo de julgamento de suas ações terá dificuldade a superar essa fase.

A partir dos dois anos as crianças vão se tornando capazes de compreender regras simples, claras, precisas e consistentes. A criança também precisa que as regras sofram refinamentos constantes, graduais e progressivos.

Se é gentil escrever a dedicatória em um livro que se dá de presente, a criança naturalmente deduz que seria super carinhoso enriquecer as ilustrações do exemplar raro da Divina Comédia.

Se é permitido recortar revistas velhas para fazer o trabalho da escola, também é correto recortar o livro emprestado da biblioteca.

As crianças do simbólico não são capazes de se colocar no lugar do outro, por isso os pais precisam estar alertas às inconsistências cotidianas triviais e imperceptíveis nas regras que estabelecem, mesmo aquelas que não são verbalmente enunciadas.

A criança não pode se colocar no lugar dos pais para compreender que nos dias em que o trabalho foi mais leve os pais estão disponíveis para viver com elas uma experiência rica e satisfatória, mas que essa disponibilidade desaparece nos dias mais estressantes.

É necessário que a criança proteste da forma que puder contra o descumprimento da regra pelos pais e natural que busque o restabelecimento da ordem que lhe é mais satisfatória.

Também é natural do raciocínio moral heterônomo que a criança vivencie conflitos cognitivos entre sua necessidade de desafiar os limites e da obediência ao pais, conflito interno que se agrava na ausência dos pais.

Os conflitos cognitivos são essenciais para o processo de aprendizado da criança, que precisa aprender a lidar com a passagem do tempo e com a permanência das regras apesar da ausência do indivíduo do qual a lei emana, mas o para o observador despreparado esse exercício pode parecer um ato de desobediência descarada e desrespeitosa.

A criança do simbólico tem na imitação um de seus principais processos de aprendizagem, então é necessário que os pais reflitam bastante sobre suas próprias ações e sobre como estabelecem e aplicam as regras para os filhos, pois é a maneira como os pais estabelecem e aplicam as regras e como procedem com o julgamento das ações da criança que é aprendida pela criança como o modo correto de agir com todos os demais.

O que os pais estão ensinando em primeiro lugar ao bater nos filhos é que bater e apanhar, e não apenas bater como muitos poderiam pensar, são mecanismos válidos e indispensáveis para a garantia do cumprimento das regras, bem como para a manutenção de uma relação de amor e cuidado.

Quando os pais batem nos filhos reforçam na criança o temor de perder o amor dos pais, reforçam o realismo moral e reforçam a coação social.

Então, ao bater, os pais dificultam o desenvolvimento cognitivo e moral da criança, pois a privam do ambiente seguro e tranquilo necessário à livre expressão das ideias, à contestação e à discussão das leis.

É somente a partir das oportunidades de debater sobre as regras e suas aplicações na vida prática que o indivíduo se torna capaz de apropriar-se delas como guias para suas ações.

À medida que a criança caminha para o operatório-concreto vai gradualmente adquirindo a capacidade de modificar as regras e de agir conforme valores socialmente compartilhados.

Da heteronomia à autonomia
O raciocínio moral da criança a partir dos sete anos


O raciocínio moral da criança no operatório-concreto continua heterônomo, mas suas experiências podem ajudá-la a construir gradualmente um raciocínio moral autônomo.

Ao perceber que o outro com o qual se relaciona pode pensar ou agir de forma diferente de si, a criança pode compreender que a verdade não é unilateral, mas precisa de uma correspondência observável. A percepção de que o outro pode ter um pensamento distinto do dela só pode ocorrer no campo da ação.

A criança do operatório-concreto não tem capacidade cognitiva para a reflexão sobre seu comportamento, sobre as regras ou sobre leis teóricas. As pessoas e os atos são julgados por uma escala de valor absoluta.

A criança vai se tornando cognitivamente apta a perceber que as leis e as regras existem por terem sido criadas por pessoas e que, por isso, podem ser avaliadas ou modificadas de acordo com a ocasião, com isso vai se tornando capaz de experimentar o respeito mútuo.

A relação da criança com seus pais também vai se transformando. Os pais passam a ser vistos cada vez mais como “iguais” e cada vez menos como “quem dita as leis”.

Sem capacidade de abstração a criança do operatório-concreto ainda não percebe intenções e estabelece o certo e o errado em seus julgamentos pelos valores que assumiu para si mesma.

Como seu raciocínio se dá no universo concreto, não pode perceber as intenções dos outros e os julga apenas pelos resultados concretos de suas ações.

A criança torna-se agora capaz de estabelecer relações de reciprocidade, mas essa reciprocidade é limitada, pois é espontânea, tal como nas relações de amizade.

A reciprocidade espontânea acontece quando há o compartilhamento de valores comuns e não é preciso um esforço de abstração ou de readaptação para que o respeito mútuo seja estabelecido.

A criança precisa vivenciar a reciprocidade espontânea como uma etapa rumo à reciprocidade normativa, mas o sentimento que a rege é o de simpatia e não o de dever.

As regras ainda são externas, mas a criança precisa contestá-las e questioná-las, por isso não basta que as regras sejam fáceis de entender, não basta que as regras sejam curtas, claras e precisas, as regras precisam de fundamentação.

A criança precisa aproveitar as oportunidades de contestação e de questionamento das regras e das leis para articular seu desenvolvimento moral rumo à autonomia e tanto o ambiente doméstico quanto o ambiente escolar tem papel decisivo em incentivar ou reprimir esse aprendizado.

A criança precisa questionar a existência das regras, precisa comparar as regras de sua casa com as da escola e com as regras da casa de seus colegas, mas seus julgamentos são ainda balizados pela materialidade e pelo concreto e não por princípios.

As mentiras, por exemplo, podem se motivo de atrito entre a criança e seus pais, pois para a criança do operatório-concreto uma mentira se torna mais errada à medida em que foge da sua concepção de realidade.

Para a criança, dizer que ganhou um brinquedo que na verdade foi tomado sem permissão do colega não lhe parece grave, sendo compreendido apenas como uma pequena distorção. Grave seria dizer que o brinquedo lhe fora dado de presente por um duende.

A criança precisa conversar com tranquilidade sobre os valores que motivam as ações, precisa ser incentivada a expor suas intenções no momento em que suas ações estão sendo julgadas, bem como a prestar atenção às intenções dos outros no momento em as ações daqueles estiverem em julgamento.

O exercício de reflexão precisa ser constantemente incentivado. A partir dos sete anos a criança já está apta a participar com os pais de reflexões sobre o mundo extra-familiar.

Discutir com os filhos a respeito do conteúdo repleto de estereótipos e de preconceitos veiculado diariamente pelos media pode ser uma experiência rica para seu desenvolvimento moral e cognitivo.

O exemplo continua sendo um mecanismo importante de aprendizagem. Dificilmente uma criança chegará ao estágio de se colocar no lugar do outro para julgá-lo se esse exercício não for praticado por seus pais em seus próprios julgamentos.

Ao incentivar que a criança busque outros ângulos para compreender um mesmo acontecimento, ao incentivar que a criança se coloque no lugar daquele que está sendo julgado, proporciona-se à criança a oportunidade de desenvolver seu raciocínio moral rumo à autonomia e uma criança capaz de perceber a realidade por diversos ângulos está preparada para lidar com os cenários de diversos tipos de abuso.

Em casos de bullying, por exemplo, o indivíduo cuja moral é heterônoma acredita sinceramente que os valores compartilhados por seu grupo são validos para todos e, se acreditar que bater é uma forma de expressão válida, aceitará tanto que os colegas o machuquem quando não se considerar capaz de acompanhá-los, quanto que é legítimo bater ou humilhar aqueles que lhe parecerem inferiores ou subalternos.

Potencial para a autonomia
O raciocínio moral do adolescente a partir dos 12 anos


A partir dos 12 anos a criança passa por um conjunto amplo de transformações e passa a ser denominada de adolescente. É o período em que deve chegar ao estágio cognitivo denominado operatório-formal, no qual se torna apta a alcança o estágio do raciocínio moral denominado autonomia.

Para alcançar a autonomia é preciso que o adolescente seja capaz de usufruir das oportunidades de discussão sobre as regras e que a opinião de todos seja ouvida e considerada em seu ambiente sociofamiliar.

Para chegar à moral autônoma os adolescente precisam tonar-se capazes de estabelecer relações de respeito mútuo e isso depende de terem incorporado mais mecanismos de cooperação do que de coação em sua trajetória até a adolescência.

O adolescente passa a trabalhar com hipóteses e reflexões conceituais, podendo ter grande interesse por discussões acerca de conceitos como justiça e honestidade, certo e errado.

Precisam discutir exaustivamente as regras durante os jogos e descobrem que podem aplicar exceções depois de avaliações bastante extensivas.

O adolescente pode alcançar o estágio da moral autônoma, mas para isso precisa que suas relações evoluam da reciprocidade espontânea para a reciprocidade normativa.

Para que se tornem capazes de construir relações cuja reciprocidade seja normativa, os adolescente precisam experimentar relações cujo respeito mútuo seja bastante forte, tão forte que os indivíduos envolvidos experimentem interiormente a necessidade de tratar aos outros da forma como gostariam de ser tratados.

O adolescente precisa perceber que em seu universo as pessoas reconhecem as obrigações e os valores dos demais como tão válidos e importantes quanto os seus próprios.

O julgamento moral autônomo só pode surgir quando suas relações evoluem da reciprocidade espontânea para a normativa, ou seja, quando as ações passam a ser balizadas pela satisfação do outro e avaliadas de acordo com suas intenções, mesmo quando as pessoas envolvidas possuem escalas de valores diferentes.

Somente a partir de valores distintos é que os dilemas precisam resolvidos a partir da substituição recíproca de escalas, por isso as experiências de intercâmbio cultural são muito importantes a partir dessa idade.

Ao alcançar o estágio da autonomia o indivíduo se torna responsável por suas própria escolhas, que passam a ser avaliadas de acordo com um referencial interno e não pela imposição de terceiros, e torna-se capaz de julgar as ações de terceiros a partir das intenções daqueles, sem visar sua própria satisfação individual e sem se desfazer de sua própria escala de valores para compreender a do outro.

As ações realizadas com o objetivo de aumentar o prestígio pessoal ou que são avaliadas de acordo com uma escala de valor pessoal não requerem o estágio da moral autônoma.

Considerações finais


Os pais precisam ser capazes de se colocar no lugar da crianças para que possam estabelecer regras e julgar as ações das crianças de forma satisfatória.

As ações dos pais são seu principal mecanismo de ensino, por isso precisam compreender que ao criar e aplicar as regras estão também ensinando às crianças como proceder nos momentos de conflito.

Os pais devem lembrar que ao bater estão ensinando seus filhos tanto a bater quanto a apanhar e, em especial, estão ensinando-lhes que bater e apanhar são expressões válidas de amor e de cuidado.

Respire fundo antes de agir
Os momentos de raiva não são adequados para tratar da aplicação de regras com os filhos. Deve-se evitar discutir na hora da raiva para não magoar – ou machucar – uma criança para sempre.

Exemplo é básico
Nada de pedir à criança que respeite as pessoas e na sequência xingar alguém no trânsito, por exemplo, ou de dizer que não bata nos menores e dar-lhe umas palmadas de vez em quando.

Basta de violência no mundo
E se um funcionário é agredido pelo chefe por conta de um erro cometido? Ao tratar as crianças como se deseja ser tratado constrói-se um mundo melhor para todos.

Não descontar na criança o estresse do dia
Ao chegar cansado do trabalho é melhor pedir um tempinho aos filhos, tomar um banho, relaxar um pouco e só depois ficar perto deles, mesmo que seja apenas por meia hora.

Aproximar-se para uma conversa séria
Ao conversar com as crianças, deve-se manter um tom de voz baixo e calmo e, especialmente ao repreendê-las, deve-se dar as mãos à criança, pois o contato físico ajuda a gerar confiança.

Não deixar o pedido de desculpas para depois
Quando se arrepender de uma atitude, como das palmadas que deu no filho num momento de descontrole, deve-se ser sincero ao explicar o erro cometido e manifestar o arrependimento. A criança precisa aprender que pedir desculpas não é um ato vergonho e que reconhecer o próprio erro não diminui quem o faz.

Escutar a criança e se colocar em seu lugar
Todos tem direito a serem ouvidos antes de serem julgados, mas as crianças nem sempre estão prontas a elaborar por si mesmas seus motivos e intenções. As crianças precisam ter o direito de se defender, sempre, e precisam da ajuda dos pais para aprender a fazê-lo.

Valorizar as boas atitudes
Os elogios servem de estímulo para que a criança sinta que é capaz de agradar. Sem elogios a criança pode entender que nunca é capaz de atender as expectativas dos pais

Começar desde cedo
É preciso criar espaços para o diálogo com as crianças desde quando ainda são bem pequenas. A mais discreta das atitudes pode ter grandes consequências.
Publicado também em http://pre-esferapublica.blogspot.com/2010/11/algumas-palavras-sobre-moral-da-crianca.html

segunda-feira, julho 26, 2010

Reconhecer um erro de si

Publicação movida para http://leonardo.ruoso.com/2010/07/reconhecer-um-erro-de-si.html.pt

Todos estamos sujeitos a cometer erros.
O que diferencia os bons dos ruins não é apenas o fato de cometerem mais ou menos erros, mas também a capacidade de reconhecer os próprios erros e de se redimir, especialmente nas situações mais desconfortáveis.
Talvez o que torne o pedido de desculpas tão difícil de ser efetivado seja o fato de que a maioria dos pais é incapaz de reconhecer seus erros para com seus filhos. Talvez crie a cristalização de que as desculpas estão restritas aos subalternos.
A relação entre pais e filhos é bastante definidora da relação adulta da pessoa com a autoridade, então a posição de autoridade dos pais e sua recusa habitual em reconhecer os próprios erros em frente aos fihos pode levar o filho a criar dentro de si uma dicotomia entre nobreza e humildade, ambas as palavras tomadas em sentido bastante estrito.

sábado, julho 24, 2010

Sobre o projeto de lei que trata da palmada

«Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino»
Gilles Deleuze

Sinto-me impelido a dar o retorno pedido sobre o texto «Goleiro Bruno e a Lei da Palmada», disponibilizado em seu blog, acessível através da ligação «http://adrianaoliveiralima.blogspot.com/2010/07/goleiro-bruno-e-lei-da-palmada.html». Não é sempre que um assunto me proporciona tanta motivação para o debate. Acontece que esse em particular, imiscuísse por campos bastante complexos de teorias das ciências política, da psicologia cognitiva e, de certa forma, também da filosofia.

O primeiro ponto a ser considerado é do papel do governo na normalização das relações entre pais e filhos ou nas relações entendidas como privadas, ou seja, fechadas ao ambiente doméstico. Nesse ponto é importante separarmos o que seria um debate de cunho utópico do debate também necessário, de cunho aplicado.

Uma coisa é discutirmos a utopia de um Estado que não interfere no ambiente privado ou nas relações privadas. Trata-se de uma bandeira política válida, com pessoas dispostas a defendê-la com a própria vida (ao menos até uma certa idade): de um lado estão os anarco-socialistas, também chamados de libertários ou simplesmente anarquistas e, do outro, os anarco-capitalistas, também chamados de libertarianistas. São duas correntes que pregam a quase extinção do Estado, que se encarregaria exclusivamente da defesa externa da comunidade. Pensar a viabilidade teórica de tal sociedade é um exercício válido, mas não percebo sentido em se debater as leis em vigor ou em tramitação a partir dessa mesma discussão, pois nosso Estado, bem como todos aqueles dos quais tenho conhecimento, tem suas instituições estruturadas sobre paradigmas bastante distintos.

Sendo assim, aquilo que nomeei um debate de cunho aplicado é aquele que se restringe aos paradigmas fundantes da presente organização de governo e, nessa organização de governo, o papel do governo é bastante mais amplo que o desejado tanto por libertários quanto por libertarianistas. Creio contudo que seja desejado pela maioria das outras pessoas, posto que suas leis são fruto de processos democráticos.

Podemos debater as leis que estão sendo propostas, mas é preciso haver um foco. Eu, por exemplo, acredito que o regime parlamentarista seria melhor que o presidencialista, mas não cabe eu trazer essa discussão para o debate sobre a aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa nas eleições deste ano. Eu não estaria enriquecendo a discussão, pelo contrário.

Ao governo não cabe o papel de criar as crianças, salvo naqueles casos em que os pais, avós ou parentes até terceiro grau não são capazes de fazê-lo, mas ao Estado, e não o governo, cabe estabelecer parâmetros que determinam direitos, deveres, responsabilidades e limites para a atuação dos indivíduos em suas relações privadas, tanto normalizando as relações civis, quanto na criminalização de atos considerados inadequados pela sociedade. Ao governo cabe a responsabilidade de impor aos indivíduos o cumprimento das leis, e isso implica em impor aos pais e guardiães o comprimento de suas responsabilidades como pais, segundo as leis existentes.

Sendo assim, dentro do contexto social e legal em que vivemos, é pertinente que se estabeleçam leis com objetivo de normalizar as relações privadas, mesmo as relações domésticas, não apenas pelo viés criminal, mas também civil.

É claro que a forma de se relacionar com essas leis, de interpretá-las e compreendê-las varia de indivíduo para individuo, não apenas mas também conforme seu estágio de desenvolvimento: pré-convencional, convencional ou pós-convencional. Num mundo ideal ou utópico todos os adultos estariam no estágio pós-convencional de desenvolvimento do raciocínio moral, mas sabemos que grande parte da população deste ou de qualquer país pode alcançar, pelo suporte social, o estágio convencional como seu limite individual.

O projeto de lei que hora se discute trata apenas de um aclaramento de outros dispositivos já existentes, mas não está sendo construído gratuitamente ou «chovendo no molhado» como poderia se dizer. Tal projeto é fruto de longa militância das principais entidades e conselhos de defesa da criança e do adolescente, que percebem cotidianamente o efeito da falta de ênfase e clareza dos dispositivos atuais.

De fato, já é proibido qualquer tipo de violência, não apenas física, mas também psicológica, contra uma criança ou adolescente. É proibido contra qualquer pessoa até, mas policiais, promotores e juízes são pessoas, e, como todas as demais, interpretam os termos genéricos e amplos da lei a partir de seus preconceitos individuais. Assim todos fazemos. É um esforço hermenêutico consciente dos membros do Judiciário e do Executivo a interpretação das leis segundo os valores e princípios dos legisladores que a escreveram. Para isso, muitas vezes, o Legislativo precisa revisar uma lei existente ou criar uma nova, que complemente e aclare, com um texto mais específico, mais direto, as intenções do legislador, assim espera-se facilitar cotidianamente essa interpretação, torná-las mais direta.

Assim ocorreu com a Lei Maria da Penha. Não é que anteriormente à lei o marido pudesse bater impunemente em sua esposa. Já era crime como é crime bater ou agredir fisicamente, por menor que seja a agressão, qualquer pessoa, viva ou morta, mas havia a necessidade de melhorar os dispositivos existentes, para aumentar sua eficácia.

É a mesma questão quanto ao projeto de lei contra a palmada. Ora, uma criança ou adolescente não deixa de ser uma pessoa, é crime agredí-lo, é uma pessoa especial, protegida pelo Estado, com direitos e proteções adicionais, deveria ser claro para todos que não se pode agredir a uma criança.

No entanto, apesar disso, não é raro encontrar pessoas que defendam publicamente que os pais e as mães cometam agressões contra seus filhos, já vi isso em igrejas, em reuniões de escola ou em conversas informais. É por isso que a complementação do marco legal é necessária, pois é preciso tornar mais claro para a toda a sociedade e também para os agentes do governo o teor das leis já existentes. Até que fique claro que é crime agredir qualquer outra pessoa, seja ela seu filho, sua esposa ou seu empregado, todas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade em relação a um indivíduo cuja relação de poder é absolutamente desbalanceada, cujos abusos é papel do Estado coibir.

Talvez não seja necessário criar uma lei que diz que é proibido aos pais dar drogas ilegais a seus filhos, pois entende-se bem que se é proibido dar drogas ilegais a qualquer pessoa, mais grave (do ponto de vista legal) é dar drogas a crianças e adolescentes. O estranho é que sendo crime agredir qualquer pessoa, tenha gente que defenda ou autorize a agressão contra crianças ou adolescentes, como se eles não fossem pessoas dignas de direito.

É lamentável que tal projeto de lei precise tramitar e, mais lamentável ainda, é que não estamos discutindo o direito de agredir, ou seja, se a agressão a qualquer pessoa deva ser descriminalizada, estamos discutindo se uma exceção deveria existir para que o adulto (pai, professor ou responsável), que está em um papel de poder inquestionável em relação à criança (filho, aluno ou menor sob sua proteção), possa agredí-la, como um senhor a seu escravo. Dependendo de quem é meu interlocutor, essa pode ser uma discussão bastante desconfortável, mas sua existência mostra toda a importância da reforma desse marco legal.

De fato, é importante considerar o papel dos exemplo ou modelos aos quais imitar ou referenciar em todo processo de aprendizado. A criança ou o adolescente que apanha aprende através do exemplo que a agressão física é a solução para as situações que carecem de recursos intelectuais ou argumentação como meio de resolução de conflitos. Elas aprendem que é correto o mais forte subjugar o mais fraco através da violência e, acredito, não deveria ser isso que gostaríamos de ensinar coletivamente para nossas crianças.

O esforço de resolução de conflitos pela argumentação não é natural, precisa ser aprendido. Natural é agredir. Então é aceitável que um bebê ou uma criança da primeira infância usem a violência como meio de resolução de conflitos, pois intelectualmente eles ainda não estão preparados para aprender a resolvê-los de outra forma.

As crianças precisam aprender, à medida que crescem e que sua capacidade de raciocínio se amplia, que essa não é uma forma aceitável em nossa sociedade, pois não é assim que os adultos agem e é só assim, num ambiente de respeito-mútuo, que se pode esperar a constituição de uma personalidade autônoma. O respeito precisa ser aprendido. Não é possível a uma criança tornar-se um adulto autônomo se não considera a si própria digna de respeito e, voi lá, quem tem o poder para lhe autorizar a se respeitar se não seus pais ou cuidadores primários, professores e protetores? Bater numa criança e em especial em um filho é perpetuar a barbárie como meio de solução dos conflitos difíceis.

Falo em perpetuar, pois são os modelos da infância que nos surgem nos momentos de maior pressão, nos momentos em que não sabemos o que fazer, então é esse modelo que surgirá no momento em que o filho se tornar pai e se deparar em situações difíceis com seu próprio filho: a reprodução transgeracional da violência e da humilhação.

É, de fato, inaceitável, que um adulto, quando chamado a se aproximar de uma criança, no ápice de um conflito, acredite que deva abrir mão de seu papel como exemplo positivo, e utilize sua superioridade física, social e econômica para humilhar seu próprio filho, que já lhe devota respeito e que passa a perceber seu próprio corpo como indigno de respeito, do respeito dos pais e, portanto, do seu próprio respeito.

O que se espera desse adulto é que encontre a paciência e a autonomia necessária para se por no lugar do outro, da criança, compreender suas necessidades de satisfação e criar um cenário positivo de resolução de conflitos, aproximando-se da criança através de argumentos acessíveis ao seu nível intelectual e de raciocínio moral.

Lamentável é que tantas vezes os filhos sejam agredidos por não compartilharem de decisões que são meros caprichos e birras dos pais. Quantas vezes eu mesmo me vi sem fundamentação lógica para minhas decisões arbitrárias na relação com os fihos no momento em que me via obrigado a sustentá-las. Se eu achasse que bater é certo, quantas vezes meus filhos teriam apanhado por não atender aos meus caprichos?

Sim, os pais estão numa situação de autoridade que lhes permite criar leis, criar regras e tomar decisões emanadas de sua própria autoridade e, muitas vezes, a criança não tem competência intelectual para compreender toda a fundamentação, então nesse caso a decisão, lei ou regra é estabelecida formalmente a partir dessa autoridade, mesmo assim, se você quer promover o desenvolvimento do raciocínio moral e a boa auto-estima da criança, esse tipo de fundamentação precisa ser explícito e restrito aos casos em que são necessários.

É necessário para a criança, como é para o par nas relações entre adultos, que as regras e as exigências tenham sua fundamentação declarada explicitamente, em especial nos casos em que essa fundamentação emana do ser solicitante. É importante que o pai, o professor ou o gerente, quando estabelecem uma norma, uma solicitação, deixem claro os aspectos subjetivos de suas solicitações. Não também, mas principalmente quando desprovidas de sustentação evidente para a outra parte. «Baixe o som, por que EU me sinto incomodado com o volume, que está exagerado para mim» e não «Baixe o som que está alto demais». Tal atitude é muito importante para que o outro ser possa estimar-se bem ainda que subordinado ao outro, e não como um ser intrinsecamente inferior.

Para que os indivíduos alcancem o estágio de desenvolvimento moral pós-convencional eles precisam aprender e compreender que não há fundamento para uma moral universal.

Sabemos que não existe fundamento natural para uma moral universal e que os únicos pressupostos concluídos ao longo da história para uma moral universal estavam fundados no princípio de uma moral heterônoma, emanada de um deus, sabemos também que nenhum desses paradigmas jamais se constituiram universais a despeito dos tantos empreendimentos genocidas empenhados por seus devotos.

Sabemos que o esforço kantiano de formulação de uma moral universal, que tem em Piaget um de seus herdeiros, não consegue cumprir a promessa de construção de um paradigma moral universal e moderno.

Resta-nos militar para que o Estado cumpra seu papel de regular as relações individuais, impondo aos cidadãos o monopólio estatal do uso da violência, em especial para assegurar a segurança e a proteção dos indivíduos mais fracos em situação de vulnerabilidade perante indivíduos mais fortes, fazendo-se necessário explicitar que esta proteção deve estender-se ao íntimo do lar, onde sabe-se que a violência acontece às escuras, não apenas para com as crianças, mas também para com as mulheres, os idosos, os deficientes e os empregados e as empregadas.

Ensinar o agir moral é uma tarefa complexa, pois sendo o raciocínio moral repleto de complexidades, seu desenvolvimento requer oportunidades vivas e marcantes. Um pai, no momento em que resolve seus conflitos através da força, está apontando na direção oposta do ensino da moral, a despeito do motivo. O raciocínio moral é cheio de grandes dilemas e a vida adulta é cheia de grandes dilemas. Que adultos queremos decidindo sobre eventos como o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki? Será mesmo que são aqueles que aprenderam que o mais forte resolve os conflitos mais difíceis pela agressão?

Não posso acreditar que pessoas tão esclarecidas possam defender o lar como trincheira legítima para o cultivo e a manutenção da barbárie, da covardia que é um adulto cinco ou dez vezes mais pesado agredir ou humilhar uma criança a quem deveria proteger. Nosso esforço de educação e de formação das gerações mais novas deveria ser o de ensinar mecanismos sofisticados de resolução de conflitos, de promover o desenvolvimento da moral autônoma (em Piaget) ou o nível pós-convencional (em Kohlberg), que são necessários à convivência e à construção de uma sociedade plural, capaz de respeitar os outros em suas diferenças, inclusive com relação às suas escalas de valores. Ao Estado, sim, cabe velar pela segurança e a integridade dos mais fracos diante dos mais fortes.

Atribuir a violência urbana ou doméstica à redução da própria violência doméstica não pode se sustentar. É como dizer que os Hooligans praticavam seus atos de violência porque seus pais não os educaram direito. Sabe-se que não é verdade, que se, por simplificação, tomarmos por fundamento a pirâmide de Maslow, podemos compreender aquele fenômeno em meio às transformações sociais e econômicas capitaneadas pela ministra Thatcher na Inglaterra.

O desafio da não-violência é grande, requer esforço, requer comprometimento, não é natural. Natural é a violência, natural é a barbárie. Bater é fácil. Bater e agredir crianças é uma herança transgeracional difícil ser abandonada, por isso esse projeto de lei é pertinente e necessário.

Tal projeto merece aplausos e defesas calorosas e precisa, sim, que os pedagogos estejam ao lado dos jornalistas, dos psicólogos dos assistentes sociais e de tantos outros profissionais, independente da habilitação, que se posicionam em defesa das crianças e dos adolescentes e de uma sociedade melhor para nossos filhos e netos.

Reproduzido em «http://pre-esferapublica.blogspot.com/2010/07/se-as-criancas-conseguissem-que-seus.html»

quinta-feira, agosto 25, 2005

Muito embora eu esteja com algumas idéias, estou me ocupando, nesse momento, com três coisas: (1) pesquisa bibliográfica para minha pesquisa sobre a arte como celebração da transgressão, (2) articulação para o lançamento da Esfera Publica em formato mais profissional que um simples e mero blog em periodicidade semanal e (3) resolver a doença que se implantou nos últimos tempos em mim que até agora tem sintomas identificados como estruturalismo existencialista sartriano não marxista, o que parece completamente alunicinado e não tem tratamento conhecido.